Trump Instrumentaliza o Autismo: entre o analgésico e a mentira

Donald Trump voltou a ocupar as manchetes ao afirmar que o uso de Tylenol (paracetamol) durante a gravidez estaria ligado ao desenvolvimento de autismo em crianças, chegando a sugerir que grávidas deveriam evitar o medicamento. A declaração se soma a sua velha insistência em reavivar a falsa relação entre vacinas e autismo, já amplamente desmentida pela ciência. Trata-se de mais um episódio de anticiência, no qual um discurso político simplista e alarmista se sobrepõe ao consenso médico e científico. Mais uma vez, escolheu o autismo. Não há novidade, pois trata-se do mesmo populismo anticientífico que rende manchetes fáceis, mobiliza medos profundos e enfraquece quem trabalha seriamente pela causa.

A discussão sobre a segurança do paracetamol na gestação não é nova, mas a ciência tem avançado para oferecer respostas mais precisas. A maioria das pesquisas que sugeriam uma ligação eram estudos observacionais, que podem identificar correlações, mas não são capazes de estabelecer uma relação de causa e efeito. Fatores de confusão, como a condição médica que levou ao uso do analgésico (febre, infecção, dor crônica) ou o histórico familiar, não eram devidamente controlados.

Um estudo de grande impacto, publicado no Journal of the American Medical Association (JAMA) em abril de 2024, trouxe um novo nível de clareza sobre o tema. Conduzido na Suécia com uma população de quase 2,5 milhões de crianças, o estudo utilizou uma metodologia de controle de irmãos. Essa abordagem é poderosa porque permite isolar o efeito do medicamento ao comparar irmãos que foram expostos ao paracetamol durante a gestação com seus irmãos que não foram, neutralizando assim a influência de fatores genéticos e ambientais compartilhados pela família.

A conclusão do estudo foi inequívoca: “O uso de acetaminofeno (Tylenol) durante a gravidez não foi associado ao risco de autismo, TDAH ou deficiência intelectual das crianças na análise de controle de irmãos. Isso sugere que as associações observadas em outros modelos podem ter sido atribuíveis a fatores de confusão familiares” [1].

A OMS (Organização Mundial da Saúde) alertou que os anúncios feitos por Donald Trump em relação ao autismo não têm base científica. Segundo a agência, a síndrome não está relacionada nem ao uso de Tylenol e nem com vacinas. Pesquisas que identificaram correlação precisam ser interpretadas com cautela pois não determinam uma relação de causa e efeito. Quando se controlam variáveis importantes — como histórico familiar ou condições médicas que levaram ao uso do medicamento — os sinais dessa suposta ligação é enfraquecida. Além disso, órgãos de referência, como a FDA e o Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas, continuam considerando o Tylenoll seguro em uso moderado durante a gestação, especialmente porque deixar dores fortes ou febres altas sem tratamento pode ser muito mais prejudicial ao bebê.

Trump sabe disso? Provavelmente sim. Mas ele também sabe que falar contra “as grandes farmacêuticas” lhe garante aplauso fácil e cria a imagem de líder que “diz o que os outros escondem”. Ao jogar Tylenol e vacinas na fogueira, ele alimenta sua base mais desconfiada da ciência, reforça movimentos antivacina e até abre espaço para aventuras econômicas — processos judiciais bilionários, queda no valor de ações de empresas farmacêuticas e ascensão de “alternativas naturais” sem comprovação. O impacto econômico é imediato, pois basta uma frase desse tipo para afetar ações de empresas e abrir espaço para especulações de mercado.

O problema é que esse tipo de declaração não é inofensiva. Pelo contrário, o efeito colateral é devastador. Mães de crianças autistas podem passar a carregar a culpa de ter tomado um analgésico. Pesquisadores sérios veem seu trabalho ser engolido por teorias conspiratórias. Profissionais de saúde precisam enfrentar pacientes mais desconfiados e inseguros. E a sociedade, mais uma vez, é arrastada para um terreno de desinformação, onde gritos valem mais que evidências.

A busca por uma explicação simples e imediata para o autismo pode até soar sedutora, mas  é falsa. O que Trump fez foi instrumentalizar um tema complexo e sensível para obter ganhos políticos, em detrimento das famílias, da ciência e da saúde pública. O resultado é um ambiente contaminado por ruído, onde mitos ganham mais espaço do que o conhecimento produzido com método e responsabilidade. 

O autismo é uma condição multifatorial complexa, com fortes componentes genéticos e influências ambientais que ainda estão sendo investigadas. A busca por uma causa única e evitável, embora compreensível, é uma simplificação perigosa da realidade. A instrumentalização dessa busca para ganhos políticos é irresponsável e prejudicial à saúde pública.

Diante do cenário atual, é fundamental que cada grupo desempenhe seu papel para promover a clareza e a responsabilidade.

Para Cientistas e Pesquisadores, a prioridade deve ser continuar investigando as verdadeiras origens multifatoriais do autismo, utilizando metodologias rigorosas que controlem adequadamente os fatores de confusão. Os próximos passos incluem priorizar estudos sobre a interação entre fatores genéticos e ambientais, além de comunicar os resultados de forma clara e acessível ao público. É essencial que a comunidade científica mantenha o compromisso com a transparência e o rigor metodológico, evitando que lacunas no conhecimento sejam preenchidas por especulações ou teorias conspiratórias.

Para Clínicos e Profissionais de Saúde, a recomendação central é manter uma comunicação aberta e baseada em evidências com os pacientes, explicando claramente os resultados de estudos como o da JAMA e os riscos reais de não tratar condições como febre e dor durante a gravidez. Os próximos passos envolvem tranquilizar as gestantes sobre a segurança do Tylenol quando usado conforme a orientação médica e combater ativamente a desinformação em suas práticas clínicas. É fundamental que os profissionais se mantenham atualizados com as evidências mais recentes e sejam proativos em desmistificar informações incorretas.

Para Pais e Familiares, a recomendação é buscar informações em fontes confiáveis, como médicos, pediatras e organizações de saúde respeitadas, desconfiando de notícias sensacionalistas e não se deixando levar pela culpa baseada em mitos. Os próximos passos devem focar em estratégias de apoio, intervenção precoce e políticas públicas que garantam qualidade de vida e inclusão para pessoas no espectro autista. É importante que as famílias direcionem sua energia para ações construtivas que realmente beneficiem seus filhos, em vez de se concentrarem em culpas infundadas ou teorias não comprovadas.

A ciência, através de estudos robustos, oferece um veredicto claro: não há evidência de uma relação causal entre o uso de Tylenol na gravidez e o autismo. É imperativo que essa informação prevaleça sobre o ruído da desinformação. O foco deve estar em apoiar a pesquisa séria, garantir que as famílias recebam orientação médica correta e construir uma sociedade que acolha e apoie as pessoas no espectro autista e suas famílias, livre de medos e culpas infundadas.

Palavras-chave: Paracetamol, Acetaminofeno, Autismo, Gravidez, Desinformação, JAMA, Causa e Efeito, Saúde Pública, Neurodesenvolvimento.

Referências

[1] Ahlqvist, V. H., Sjöqvist, H., Dalman, C., Karlsson, H., Stephansson, O., Johansson, S., Magnusson, C., Gardner, R. M., & Lee, B. K. (2024). Acetaminophen Use During Pregnancy and Children’s Risk of Autism, ADHD, and Intellectual Disability. JAMA, 331(14), 1205–1214.

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