Decreto nº 12.686/2025: o que ele realmente propõe para a educação inclusiva?

Publicado em outubro de 2025, o Decreto nº 12.686 institui a Política Nacional de Educação Especial Inclusiva, anunciada pelo governo federal como um “marco de modernização no atendimento às pessoas com deficiência, autismo e altas habilidades”. À primeira vista, o texto parece representar um avanço, ao reafirmar o direito à educação inclusiva e propor a integração do Atendimento Educacional Especializado (AEE) à rotina das escolas regulares. No entanto, sob o discurso de progresso e equidade, o decreto revela fragilidades estruturais profundas e pode, paradoxalmente, ampliar as desigualdades e a exclusão que promete combater.

O novo marco legal surge em um contexto político marcado pela atuação intensa de movimentos como a Autistas Brasil, entidade que defende a inclusão total de todos os alunos com deficiência e autismo em escolas comuns e se opõe a práticas terapêuticas como a Análise do Comportamento Aplicada (ABA), além de criticar o papel das escolas especializadas, como as APAEs. Embora a defesa da inclusão plena seja legítima e alinhada aos princípios dos direitos humanos, a ausência de pluralidade na formulação da política preocupa. Professores, pesquisadores, terapeutas e instituições especializadas praticamente não foram ouvidos durante a elaboração do decreto, o que compromete sua consistência técnica e pedagógica. O resultado é um texto normativo com aparente “boas intenções”, mas pouca sustentação prática, marcado por um viés ideológico que pode restringir a diversidade de abordagens educacionais e o direito de escolha das famílias.

Entre as principais lacunas, destaca-se a falta de fonte específica de financiamento. O decreto determina que as despesas “correrão à conta das dotações orçamentárias do MEC, observada a disponibilidade financeira”, o que, na prática, significa ausência de novos recursos e ainda maior restrição quanto à aplicação dos recursos disponíveis. Em um cenário de contingenciamento orçamentário, é previsível que as ações voltadas à formação e à contratação de profissionais de apoio sejam as primeiras a sofrer cortes. Estados e municípios terão, assim, de fazer “inclusão” com os mesmos orçamentos que mal cobrem o básico, o que tende a gerar políticas de aparência, e não de efetividade.

Outro ponto crítico é a formação docente insuficiente. O decreto estabelece a exigência mínima de apenas 80 horas de capacitação para professores do AEE, o que, sabemos todos, é uma carga horária irrisória diante da complexidade do trabalho com estudantes que demandam atenção especializada. Atuar com estudantes com necessidades especiais, autismo e altas habilidades requer conhecimentos técnicos para a programação sócio-emocional e gestão comportamental de crises e outras necessidades de suporte individualizado, requerendo portanto, competências transdisciplinares e incluindo a colaboração com especialistas da área de saúde e que só podem ser desenvolvidos em formações robustas, como especializações, residências pedagógicas e supervisão contínua. Em vez de fortalecer a qualificação docente, o governo legitima cursos rápidos e de baixo custo, o que reduz a formação a um “selo simbólico” de competência. 

Não há dúvida de que a ideologia da chamada “inclusão total” e a ideia de “currículo universal” têm sido usadas como bandeiras de uma educação supostamente democrática, mas na prática vêm legitimando políticas que enfraquecem a formação docente e reduzem a qualificação profissional a um selo simbólico de competência. A “inclusão total” parte do princípio de que todos os alunos devem estar em salas regulares, sem distinções ou apoios especializados, e o “currículo universal”, derivado do Desenho Universal para a Aprendizagem, propõe materiais acessíveis a todos desde o início — mas, quando aplicados sem recursos e sem personalização, acabam apagando as diferenças individuais. Essa abordagem fere o princípio da equidade, pois trata desiguais como se fossem iguais, negando o suporte técnico-científico e pedagógico que muitos alunos necessitam para realmente aprender. Em vez de promover igualdade de oportunidades, cria-se uma inclusão de fachada, onde a presença física substitui a aprendizagem efetiva. Tal prática contraria diretamente o Acordo de Salamanca (1994), que reconhece a necessidade de identificar as necessidades educacionais especiais e assegurar formação docente adequada, recursos e apoio especializado para garantir que a inclusão ocorra com qualidade e não como mero discurso político. 

O Decreto nº 12.686 também transfere responsabilidades sem oferecer suporte. Ao determinar que o AEE ocorra “preferencialmente nas escolas comuns”, o decreto desloca exclusivamente para as redes regulares uma função antes exercida em colaboração com as instituições especializadas. Sem estrutura física adequada, sem equipe técnica e sem apoio continuado, o que se espera é que escolas pratiquem uma inclusão meramente formal, ou seja, alunos matriculados, mas sem acompanhamento efetivo, o que configura um tipo de exclusão disfarçada, mas que costuma ser usada como vitrine publicitária.

Além disso, a criação da Rede Nacional de Educação Especial Inclusiva carece de critérios claros de cofinanciamento e de mecanismos de avaliação. Cada rede de ensino terá que, no popular, “fazer o que puder”, o que tende a acentuar as desigualdades regionais. Enquanto municípios com maior capacidade de arrecadação poderão, a princípio, investir em tecnologia assistiva e formação continuada, as redes mais pobres dependerão de treinamentos genéricos e precários (se e quando houver).

Outro aspecto preocupante é o distanciamento de políticas educacionais baseadas em evidências científicas. Ao ceder a pressões ideológicas contrárias à ABA e a outras abordagens consolidadas e implementadas por especialistas da terapia ocupacional e a fonoaudiologia, o decreto se afasta de práticas eficazes, fragilizando a formação dos professores e o desenvolvimento dos estudantes em detrimento de uma educação baseada em pressupostos de cunho ideológico e pseudocientíficos. Essa escolha reforça um movimento político de deslegitimação da ciência, o que é especialmente perigoso em uma área tão sensível quanto a educação inclusiva. Nos últimos anos, o Brasil sentiu na pele o que os discursos de anticiência causaram (que o digam as campanhas de vacinação).

Na prática, o decreto amplia as obrigações das redes públicas sem oferecer condições reais para cumpri-las. Professores serão cobrados por resultados inclusivos sem dispor de formação adequada, apoio técnico ou tempo pedagógico. O Estado transfere responsabilidades, mas não transfere recursos. O resultado provável é o aumento da sobrecarga docente, do adoecimento profissional, do burnout e da evasão de especialistas da área. O discurso da “inclusão total” acaba, assim, transformando-se em um paradoxo: o aluno é incluído na matrícula, mas excluído do processo de aprendizagem significativa.

Para que a inclusão se torne efetiva e não apenas simbólica, o país precisa corrigir a rota. É urgente criar regulamentação complementar que defina processos de gestão e governança com valores mínimos de investimento federal para os programas de educação especial com ênfase na ampliação da equidade com métricas claras para avaliação e monitoração de resultados. Para tanto, é necessário que seja estabelecido uma política clara de gestão escolar, de formação docente, de garantia ao suporte transdisciplinar e o direito ao apoio individualizado quando necessário. Recursos precisam ser estabelecidos por programa e por aluno. Por fim, é essencial assegurar a autonomia acadêmica e científica, para que as práticas pedagógicas sejam guiadas por evidências, e não por ideologias ou pressões de grupos de interesse.

O Decreto nº 12.686/2025 é tecnicamente frágil e está sendo contestado pelo senado federal. Sem mecanismos claros de cofinanciamento, sem metas de formação e sem abertura ao diálogo com a comunidade científica e educacional, a nova Política Nacional de Educação Especial Inclusiva corre o risco de se tornar um exemplo de inclusão simbólica e precarizada e, mais provavelmente, de ser revogada frente às pressões da sociedade.

A tentativa de impôr mudança por meio decreto representa não apenas um retrocesso jurídico, mas um ato de descuido ético por parte do Ministério da Educação. Em vez de proteger, o MEC impõe uma política que retira direitos arduamente conquistados por famílias e profissionais que lutam há décadas por uma inclusão real — e não meramente retórica. A comunidade atípica, que já enfrenta um cotidiano exaustivo de barreiras e falta de suporte, não precisava de mais uma fonte de estresse e insegurança.

O decreto é, portanto, uma perda de tempo institucional e uma fonte de sofrimento social. Reforça o velho abismo entre o texto legal e a prática escolar: uma norma bonita no papel, mas cruel na realidade. Quando o governo fala em “inclusão” sem garantir financiamento, formação docente e acompanhamento técnico, o que se entrega à criança é apenas uma vaga, não uma educação. Isso não é inclusão — é exclusão disfarçada.

Cabe ao MEC cuidar, e não causar dor. Garantir direitos, e não removê-los sob o disfarce da universalidade. A sociedade brasileira precisa decidir se quer um sistema educacional que acolhe com estrutura e dignidade ou um que apenas declara, em letras frias de decreto, uma igualdade que não existe na vida real.

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